#6 Leitura com um Toque de... Joanne Harris

domingo, 24 de janeiro de 2021

JOANNE HARRIS

Pois é, depois de tanto tempo, voltámos com esta rubrica que me é tão querida. Tentei que estas novas conversas fossem mais pessoais e mais completas, para não se tornarem tão banais como as primeiras que fiz. Demorei mais tempo em cada autor, li muita informação antes de enviar as perguntas finais e permiti-me conhecer primeiro a pessoa a quem ia enviar o email. Espero que gostem e que fiquem a conhecer melhor a Joanne.

Joanne Harris, nasceu a 3 de Julho de 1964, em Barsnley, Inglaterra. Filha de mãe francesa e de pai inglês começou desde muito cedo a mostrar a sua paixão por leitura, tendo estudado Linguagem Moderna e Medieval na Universidade de Cambridge. 
Dentro dos muitos livros que escreveu, podemos ter ouvido falar dela na adaptação para cinema do seu livro Chocolat, de 1999, que contava com Johnny Depp e Juliette Binoche como protagonistas. Devo dizer que quando li o primeiro livro desta autora, desconhecia esta facto. A Praia Roubada foi-me oferecido há muitos anos e tornou-se aquele livro de que nunca me esqueci. Lembro-me da história, dos sítios, das personagens tao bem como se o tivesse acabado de ler ontem. Tendo lido já mais do que uma obra de Joanne, foi este primeiro "amor" que fez com que lhe enviasse um email. Pronta a ajudar, disponibilizou-se logo a responder às minhas curiosidades, com uma simpatia extrema. Não me demorando mais, passo a vos mostrar então o que a querida Joanne tem para nos contar.


The Bookshelf: Para começar, eu gostaria de levá-la à jovem Joanne e aos seus dias de infância, e perguntar se foi quando começou a sua paixão pela leitura? Ainda se lembra do primeiro livro que leu?

Joanne HarrisOs meus pais eram ambos professores, e a nossa casa estava cheia de livros. O meu avô materno, que também era francês era professor, e a sua biblioteca era extensa. Assim, era inevitável que eu gravitasse para livros desde tenra idade. Ninguém me disse o que ler, então eu li tudo o que eu podia encontrar: poesia; peças; traduções; clássicos; livros de natureza; enciclopédias; livros sobre o espaço; literatura; romances de crime (o meu avô adorava estes).

Não me lembro do primeiro livro que li, mas os meus pais e o meu avô leram-me tantas  vezes que comecei a ler naturalmente. Lembro-me do meu avô ler O Livro da Selva (a versão completa) tantas vezes que conhecia passagens inteiras de cor. Havia um livro muito antigo de poesia francesa chamado Voici des Roses, que a minha mãe me lia com frequência. E o meu pai (que era quem mais me lia livros em criança) lia-me as histórias de Enid Blyton (traduzidas para francês) e de um escritor francês chamado Georges  Chaulet, que escrevia livros fantásticos sobre Fantômette, uma menina que estudava num colégio, mas que também era uma vingadora mascarada nos seus tempos livres.

TB: Sei que leu os livros da Agatha Christie em francês, a sua primeira língua, não foi?

JH: Sim, o meu avô era um grande fã de histórias de detetives. Nunca me ocorreu que fossem traduzidos. Apenas assumi que a autora gostava de vilas inglesas.

TB: Filha de mãe francesa e de pai inglês, sente que isso influenciou a sua curiosidade em ler em diferentes línguas? Além do francês e do inglês, há outra língua onde se sinta à vontade?

JH: O meu pai é um excelente linguista que fala cinco línguas fluentemente, e por isso fui criada com um amor pelas línguas. Falo alemão fluentemente (embora esteja fora de prática). Aprendi latim na escola, e achei surpreendentemente útil depois. O meu italiano e o meu espanhol estão bem, conseguindo seguir uma conversa, mas a minha gramática não é muito precisa. Tenho aprendido o velho islandês online, e consigo lê-lo bem o suficiente para ler os textos que me interessam. Sou fascinada com o funcionamento das línguas e com o que revelam sobre as nossas várias culturas. 

TB: Esta é uma pergunta ingrata, mas prefere ler ou escrever?

JH: Isso é como perguntar a um chef se prefere comer ou cozinhar: um alimenta o outro.

TB: Esta pergunta surge porque muitos dos autores com quem falo, desde que começaram a escrever, sentem que deixaram a leitura para trás, e os fazem sentir que agora têm uma maior disposição para a escrita. Isto aconteceu consigo?

JH: Não: Penso que a leitura - o mais amplamente possível - é absolutamente essencial para uma boa escrita. Não há desculpa para qualquer autor desistir de ler.

TB: Quanto à escrita, e tudo o que envolve, qual é o seu lugar favorito para escrever? Onde se sente mais confortável e sente que as ideias fluem mais naturalmente?

JH: Tenho um barracão no meu jardim, que se tornou o meu espaço de trabalho preferido, embora possa trabalhar em qualquer lugar – incluindo em aviões e em quartos de hotel, se for preciso.

TB: A inspiração pode vir de todos os lugares. Pode ser de experiências passadas ou encontradas no momento, ao virar da esquina. A maior parte do tempo, de onde vem a sua inspiração?

JH: Não há uma única fonte. Como disseste, vem de todo o lado; coisas que leio, eventos atuais; experiência pessoal; folclore; mitos; até mesmo sonhos.

TB: Sei que no livro Coastliners (A Praia Roubada), a sua principal inspiração era o lugar onde passava alguns momentos com o seu avô, quando era mais jovem. Que memórias tem desse tempo? Ainda se lembra do cheiro que é tão característico de qualquer casa de praia? Aquela brisa do mar quando acorda? Aquela pele salgada?

JH: Muito do que me lembro está no livro, e há tantas memórias. Mas o aroma avassalador do lugar é muito evocativo: cheirava aos lamaçais do outro lado da baía, e de peixes cozinhados lá fora no antigo churrasco, e da mimosa e figueiras que cresceram atrás da casa. Grande parte da minha memória opera em torno do odor; É por isso que escrevo tanto sobre isso.

TB: Além de ser inspirada por lugares e memórias, também transmite às suas personagens as características das pessoas à sua volta, tornando as personagens semelhantes às pessoas da sua vida? Se isso acontecer, cria ainda mais ligação entre si e o elenco literário, não é?

JH: Às vezes, mas os laços nem sempre são o que parecem. Posso pedir uma característica emprestada a alguém que conheço sem sentir que estou a representar essa pessoa na página; embora, por vezes (por exemplo: no caso de Anouk, que partilha semelhanças com a minha filha Anouchka) a ligação é muito mais pessoal.

TB: Tenho de falar de Chocolat. Confesso que li Coastliners sem saber que era do mesmo autor do livro onde um dos filmes de que tanto gosto se baseava. Foi então que percebi que adicionar uma pitada de Joanne Harris, uma colher de Johnny Depp e Juliette Binoche e uma xícara de chocolate, dá uma grande receita, e uma história ainda melhor.

O que sentiu quando percebeu que a sua história estava a ganhar vida no grande ecrã? Quando soube disso, aceitou imediatamente, ou houve alguma coisa que a fez ponderar? E quando finalmente viu o filme, estava tudo lá?

JH: Ninguém na minha posição recusa uma opção de filme. Não era muito dinheiro, mas dado que na altura estava a trabalhar como professora e com uma criança pequena, qualquer dinheiro extra era bom. No início, quando a opção foi vendida, presumi que o filme nunca seria feito, e ignorei o que estava a acontecer. Depois, as coisas começaram a acontecer muito depressa, e antes que me apercebesse, o filme estava a ser feito. (Há muito mais sobre isso no meu site, na página do Chocolat). Juliette Binoche veio para ficar na minha casa para ver o seu papel e saber como eu o imaginei. Dei por mim à noite, a cantar a parte da guitarra ao telefone com o Johnny Depp, para tentar trabalhar os acordes. Depois estava no estúdio, a ver as filmagens. Nenhum filme tenta recriar tudo num livro; são meios de comunicação muito diferentes. Mas acho que me senti bem em espírito, e o casting e a produção foram fantásticos.

TB: Numa palavra, como classificaria a ligação entre o livro e o filme?

JH: Ténue.

TB: Escreveu tantos livros, abordando tantos temas. Qual foi o que mais a desafiou a todos os níveis?

JH: Todos os meus livros são desafios. Não me proponho a escrever um livro a não ser que seja algo que me desafie. Mas Blueeyedboy foi particularmente duro: era estruturalmente experimental, e as relações eram particularmente escuras. Mas foi catártico, e ainda acho que contém alguns dos melhores escritos que já fiz.

TB: Como também é autora de livros de receitas e amante de boa comida, tenho um desafio para si: se estes três livros fossem um ingrediente ou uma receita, qual seriam e porquê? Coastliners, A Cat, A Hat and a Piece of String and A Pocketful of Crows.

JH: Costliners: Panquecas de trigo mourisco, servidas logo enquanto ainda estão quentes: é um dos pratos mais simples e comuns  da minha infância, e ainda me leva de volta para lá.

A Cat, A Hat and a Piece of String: Allspice, uma mistura aromática  que a minha avó costumava colocar num número surpreendente de pratos  e bolos, porque as minhas coleções de contos são todas tão variadas,  mas  guardadas com memórias.

A Pocketful of Crows: Parece estranho ligar a comida a um livro que é essencialmente sobre fome e desejo; mas este livro está cheio de comida silvestre e ervas, por isso eu escolheria o alecrim, um aromático que funciona em tantos pratos, e enche o meu jardim com o seu cheiro nostálgico. Gosto de guardá-lo em frascos de açúcar na minha cozinha, para infundir o açúcar com o seu sabor de verão.

TB: Por último, gostaria de enviar uma mensagem a todos os leitores, e em especial aos leitores de Portugal? Falo por mim, mas gostaria muito de um dia conhecê-la pessoalmente e quem sabe, talvez por terras portuguesas.

JH: Passaram-se alguns anos desde a última vez que estive em Portugal, mas espero poder voltar em breve. Adoro os meus leitores portugueses, que têm sido tão leais ao longo dos anos e que sempre me dão as boas-vindas maravilhosas; e sinto falta deles, e do seu belo país. 

E assim terminámos a primeira de muitas conversas (espero) deste novo ciclo da rubrica Leitura com um Toque de...